Entre solas e histórias: os sapateiros que resistem ao tempo e mantêm viva a arte do trabalho manual no interior de SP
25/10/2025
(Foto: Reprodução) Dia do Sapateiro: casal trabalha na fabricação de sapatos em Presidente Prudente
O som compassado das máquinas, o cheiro de cola e o brilho do couro são parte da rotina de quem mantém viva uma das profissões mais antigas e essenciais do mundo: a do sapateiro. Na época em que quase tudo se tornou descartável, esses profissionais seguem costurando histórias, restaurando memórias e mostrando que o valor do trabalho artesanal está no cuidado e na alma de quem o executa.
Em Presidente Prudente (SP), nomes como Jorge, Claudecir e Laura simbolizam a resistência de um ofício que atravessou gerações e segue de pé — mesmo diante da modernização e da desvalorização do trabalho manual.
📲 Participe do canal do g1 Presidente Prudente e Região no WhatsApp
DIA SAPATEIRO PRUDENTE
Stephanie Fonseca/g1
Herança de uma vida inteira dedicada ao calçado
“Meu pai era artesão de calçados. Aprendi com ele ainda menino. A vida toda foi dentro do mercado de calçados”, recorda Jorge Luiz de Lima Araujo, natural do Rio Grande do Norte. Ele cresceu observando o pai trabalhar, acompanhando-o em oficinas e grandes marcas locais, em Presidente Prudente.
O profissional lembra que, quando começou, tudo era muito artesanal. “Não existiam as máquinas modernas que temos hoje. A gente fazia ferramentas com o que tinha. Eu lembro de usar tampa de lata de leite em pó furada para lixar o couro”, conta.
Jorge Luiz conta que começou na profissão inspirado pelo pai
Jorge Luiz/Arquivo pessoal
Segundo Jorge, a tecnologia facilitou o trabalho, mas também tornou o produto mais descartável.
“Antes, a gente trabalhava para restaurar, para dar vida ao que tinha valor. Hoje, muita coisa é produzida de forma rápida e barata. Mas ainda existe material de qualidade que merece ser restaurado, não só consertado. Isso é devolver a história para os pés da pessoa.”
Entre as histórias mais marcantes, ele lembra de mulheres que precisavam de calçados sob medida. Para ele, atender clientes com necessidades especiais ou pedidos exclusivos, como fantasias de personagens, o deixa satisfeito, pois produzirá algo que atenda a uma necessidade real.
Fabricações que mudam a vida das pessoas levam contentamento a Jorge
Jorge Luiz/Arquivo pessoal
“Uma peça que marcou um tempo atrás foi um sapato de noiva de número 32 ou 31, de salto alto. A menina morava em Dracena, chegou a Prudente, e conseguimos tirar a medida dela, corrigir, fazer a forma e alcançar essa condição para que ela pudesse realizar o sonho dela”, compartilhou.
Em outro momento, uma pessoa com a perna um tanto quanto grossa não conseguia usar botas, desde criança. “Nós trabalhamos, tiramos a medida e produzimos a peça para que pudesse vir de encontro à necessidade dela. Naquele momento eu vi uma mulher madura chorar de alegria pela primeira vez na vida ter possibilidade de calçar uma bota de maneira que ficasse confortável para ela.”
Para ele, a principal dificuldade da profissão hoje é a falta de valorização e de material de qualidade. “O mercado está muito descartável. Existe trabalho, mas faltam profissionais. Se houvesse uma escola de formação, haveria muito campo de trabalho. O sapateiro sempre terá serviço, mas a profissão corre o risco de desaparecer por falta de interesse, não por falta de serviço.”
Produções de Jorge Luiz, sapateiro em Presidente Prudente
Jorge Luiz/Arquivo pessoal
Mãos que trabalham juntas
Claudecir Dogna Mané começou na profissão com cerca de 12 anos, após migrar da lavoura para a cidade com a família. São 54 anos dedicados à sapataria. “Aprendi com experiência e ajuda de amigos que já trabalhavam na área. Hoje, atuo com consertos e restaurações”, contou.
Laura Alonso Luque Dogna entrou na oficina após o casamento. “Eu era professora, mas quando tive meu filho, parei de lecionar. Comecei a ajudar o Claudecir e me apaixonei pela profissão. Fui aprendendo, cuidando da parte de acabamento, revitalização e pintura dos calçados”, detalhou.
O casal trabalha junto há cerca de duas décadas. Claudecir cuida da parte pesada, enquanto Laura fica com o atendimento e os detalhes finais. “Enquanto ele conserta, eu restauro a beleza”, diz Laura.
Claudecir e Laura atuam juntos no ramo da sapataria
Stephanie Fonseca/g1
A modernização trouxe desafios. “Hoje tudo é aparência. As pessoas olham mais para a estética do que para a qualidade. Querem o sapato novo, não o restaurado”, lamenta Laura. Claudecir acrescenta: “É muito sintético, muito plástico. Às vezes o sapato nem dá condições de arrumar. A cola não segura, o material é fraco. E mesmo avisando, a pessoa quer um resultado que nem sempre é possível. Ainda assim, a gente faz com carinho.”
Eles destacam a diferença entre produção industrial e artesanal. “Tudo é mecanizado na indústria. Aqui, cada peça é feita à mão, com corte, colagem e acabamento detalhados. É demorado, mas o resultado é um produto especial, feito com cuidado e dedicação. O que sai das nossas mãos é único”, afirma Claudecir.
O vínculo com os clientes ultrapassa o balcão da oficina. “Tem gente que atendi quando era criança e hoje atendo os netos”, conta Claudecir. Laura completa: “A gente tem clientes que viraram amigos. É uma relação de confiança. Eles sabem que aqui o trabalho é feito com amor e respeito. O calçado é algo pessoal, faz parte da história da pessoa.”
Laura se dedica a acabamentos e outros detalhes
Stephanie Fonseca/g1
Uma profissão que resiste
Mesmo diante da produção em massa, esses profissionais mantêm vivo o trabalho manual. Jorge resume:
“O artesão é uma dádiva. Quando você pega um couro e transforma em algo novo, sente orgulho. O que aprendi com meu pai me permite viver em qualquer lugar, porque o que vem das mãos é eterno.”
Claudecir e Laura reforçam a mensagem: “O sapateiro sempre vai existir. Pode diminuir a quantidade de profissionais, mas a necessidade de restaurar, ajustar e criar produtos sob medida nunca vai acabar. Para quem quer entrar na profissão, é só ter vontade, dedicação e amor pelo que faz.”
No Dia do Sapateiro, esses profissionais seguem firmes — não apenas consertando sapatos, mas restaurando histórias, memórias e o respeito por quem dedica a vida ao trabalho manual.
Claudecir atua há mais de 50 anos no ramo da sapataria
Stephanie Fonseca/g1
Veja mais notícias em g1 Presidente Prudente e Região